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Existem pessoas indígenas com autistas?

O autismo é uma categoria diagnóstica aplicável apenas às pessoas ocidentais ou está presente em todas as culturas? Quais são as concepções que grupos indígenas, por exemplo, têm sobre o autismo? É possível um diálogo intercultural sobre o autismo em que a visão biomédica ocidental então hegemônica não se imponha a outras compreensões? Como a cultura influencia o desenvolvimento das funções psicológicas superiores tais como a memória, a linguagem, a percepção, a atenção? A neuropsicologia tem considerado de forma suficientemente adequada a variável cultural, sobretudo, no que diz respeito à diferença entre grupos sociais sem hierarquizações e/ou patologizações? Os processos de reabilitação neuropsicológica devem ser os mesmos para todos independente das diferenças culturais? É possível ou mesmo desejável um pluralismo terapêutico?

Não se pretende responder a nenhuma dessas questões aqui; quer-se antes com elas revelar o quão profícuo pode ser pensar os ditos transtornos do neurodesenvolvimento a partir de culturas e epistemologias não ocidentais ou pouco ocidentalizadas. O instigante é manter as questões a um contínuo debate pelo qual é possível fazer emergir diálogos frutíferos e desdobramentos fecundos. Essa parece ser uma das principais razões para indicar a leitura do livro “A pessoa autista: uma análise dos princípios andinos da reciprocidade e da complementaridade” de Catalina López Chávez. Nele a autora busca compreender os modos pelos quais as comunidades indígenas andinas produzem sentidos e significados em torno da pessoa autista. Em lugar de simplesmente assumir que os conhecimentos indígenas são insuficientes para lidar com o autismo, como amiúde se faz, a autora realiza um fecundo e promissor diálogo entre as visões indígenas sobre o autismo e os modelos explicativos ocidentais. Seu paradigma é o da neurodiversidade como forma de evitar cair em binarismo excludentes como o do normal e do patológico.

O trabalho conduzido pela autora para tratar crianças indígenas com autismo está diretamente ligado ao contato com a natureza, não apenas porque a natureza promove a integração sensorial, mas, sobretudo, porque, na cosmovisão andina, ela representa a mãe-terra, Pachamama. A civilização andina é essencialmente relacional e, se, como sugerem os diagnósticos contemporâneos do transtorno do espectro autista desde Leo Kanner, o autismo implica um déficit relacional (sic), perceber a relação das crianças autistas com a natureza torna, no mínimo, problemática essa suposição. Em sociedades antropocêntricas como as ocidentais, há uma suposição de que seres humanos estabelecem vínculos apenas com outros seres humanos. Por outro lado, em várias cosmovisões indígenas, os seres humanos não se vinculam apenas a outros seres humanos, mas igualmente ao mundo não-humano que, para eles, também são humanos no sentido de serem dotados daquilo que os ocidentais vêem como exclusivo da humanidade.

Na perspectiva andina, segundo a autora, o autismo é resultado de um desequilíbrio cosmogônico por conta da destruição da mãe natureza e, de modo simultâneo, um presente dos céus como expressão da diversidade própria ao ser humano e, por isso, devem ser tratados com compreensão e consideração. Por essa razão, eu diria, o tratamento do autismo envolve um cuidado com a natureza, pois tudo está relacionado. Quando cuidamos da natureza, estamos cuidando dos seres humanos porque um está diretamente conectado ao outro. A noção andina de vincularidad expressa a relação que os seres humanos mantêm com seu território e com a natureza. Nas comunidades, as interações se dão a partir do dar, do receber e do devolver. Quando a natureza me dá algo como o alimento, eu recebo e lhe devolvo algo como, por exemplo, um ato de cuidado para que ela se regenere e floresça. Por isso, as crianças são, desde muito cedo, incentivadas a desenvolver um “eu-comunitário”.

Em uma entrevista, Catalina Chávez chega mesmo a se perguntar, de forma provocadora, se o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade existe ou se o que as crianças ditas hiperativas têm é um “transtorno déficit de contato com a natureza”. Muito se especula sobre as causas do autismo e dos transtornos do neurodesenvolvimento. A oposição entre organogênese e psicogênese parece já superada e é mais comum admitir que os transtornos do neurodesenvolvimento são resultado da interação entre biologia e ambiente. A visão andina agrega um elemento a mais, a espiritualidade. A espiritualidade tem a ver com o que Sigmund Freud descreveu como o “sentimento oceânico”. O avanço técnico e a instrumentalização da natureza permitem cada vez menos às pessoas ocidentais o sentimento de conexão oceânica com o cosmos. E nisso está um déficit de relacionalidade dos ocidentais. Ora, e se usássemos essa “medida indígena” como medida para diagnosticar o autismo, não teríamos um aumento na contabilidade de casos entre os ocidentais? Se usássemos o déficit relacional com a natureza como critério, certamente o leitor deste texto seria considerado autista caso não o seja. Por mais que a ciência se esforce por subtrair a dimensão da contingência para supostamente ver o universal, é o movimento oposto que parece mais razoável, isto é, o que é necessariamente universal é a contingência.

Por Marcos de Jesus Oliveira (28.05.24)

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A terapia cultural psico-historiográfica de Frederick W. Hickling

“A descolonização da psiquiatria na Jamaica” do médico psiquiatra jamaicano Frederick W. Hickling detalha como a utilização da terapia cultural psico-historiográfica tornou possível desinstitucionalizar pessoas com sofrimento mental grave cujo confinamento psiquiátrico ainda hoje é a expressão de séculos de opressão resultante da “missão civilizatória” europeia e de sua ciência iniciada em 1492 com a invasão da América. A experiência de realizar sócio-drama e escrever poesias sobre o processo de colonização por parte daqueles sobre quem pesa o estigma da loucura revelam a importância que a recuperação da história tem ou pode ter na produção da saúde mental no contexto das sociedades pós-coloniais quando transformada em produção artística, um momento expressivo de apropriação coletiva e singular. Na obra, psiquiatria, psicologia, história, etnologia e arte se unem em busca de referenciais capazes de gerar outras modalidades de laços sociais cuja teleologia não passe pela hierarquização da humanidade, mas pelo reconhecimento de humanos (e não-humanos) plurais e diversos. 

Hoje mais do que nunca precisamos de uma terapia cultural psico-historiográfica, não apenas porque ainda vivemos num mundo marcado por aquilo que Aníbal Quijano designou como colonialidade, mas também porque o contemporâneo insta o sujeito a denegar seus rastros históricos. Para dizê-lo de outro modo, o individualismo como uma ideologia própria à lógica de vida imposta pela burguesia instituiu o mito do “self-made man”, do sujeito empreendedor de si.  Nessa sociedade, a maioria se torna uma espécie de Robinson Crusoé no sentido de ter que criar para si a ilusão de que deve construir sua própria vida como se essa não estivesse em relação de interdependência às demais, e que o sucesso ou o fracasso depende exclusivamente de escolhas individuais. Muitas culturas de povos afro-diaspóricas insistem na importância da ancestralidade e isso é, sem dúvida alguma, uma forma de resistência em relação à tentativa de apagamento da coletividade como suporte necessário para um ser/estar no mundo digno. A ideia de ancestralidade lembra que somos sujeitos em falta, de que há uma dívida simbólica de uma geração em relação a outra que não se paga, produzindo um elo de ligação e de sentido para além do aqui/agora.

No seminário 17, intitulado “O avesso da psicanálise”, Jacques Lacan conta, bastante surpreso, sua experiência de análise com três jovens de Togo. Sua surpresa estava relacionada ao fato de que, apesar dos jovens terem vivido sua infância em seu país de origem, o inconsciente deles pareciam funcionar segundo a lógica do Édipo europeu. Suas lembranças de infância não traziam as crenças e valores de sua cultura, pois pareciam encobertas pela lógica familialista imposta pelo imperialismo francês. Quando narravam as experiências  de seu grupo social de origem, o faziam como um etnógrafo, de forma objetiva e distante, sem o investimento libidinal que amiúde acompanham as narrativas da infância. Seus inconscientes estavam edipianizados, colonizados pelo discurso do mestre, imposto a ferro e fogo, como sói acontecer no colonialismo. A terapia cultural psico-historiográfica de Frederick W. Hickling teria um papel muito interessante a desempenhar nesse contexto, já que favorece a apropriação de suas histórias não como no relato jornalístico ou antropológico, mas pelas modalidades de gozo próprio ao universo simbólico em que nasceram e cresceram, operando uma descolonização pela saída do cativeiro edípico-colonial.

Por Marcos de Jesus Oliveira (26.05.2024)

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Pele negra, vermelha, marrom…, máscaras brancas!

“Pele negra, máscaras brancas” [1952] de Frantz Fanon se tornou um clássico para os debates sobre a construção de uma “psicologia pós e/ou decolonial”. O motivo para tanto se deve à agudeza das elaborações teóricas do filósofo e psiquiatra martinicano. Ninguém antes dele parece ter descrito com tanta minúcia os meandros estruturais, econômicos, sociais e psicológicos presentes nos processos de dominação colonial e de racialização. Partindo de três autores consagrados pelo chamado pensamento ocidental, a saber, Hegel, Marx e Freud, Fanon mostrará o quanto a dimensão material-econômica da dominação não se opõe à simbólico-psicológica, pois as duas estão intimamente entrelaçadas a tal ponto de que uma não existe sem a outra. Essas dimensões estão coladas pela ideia de raça, uma tecnologia do poder que torna possível expor um determinado sujeito, notadamente o sujeito de pele negra, à ameaça de morte, seja ela física ou simbólica, assim como à exploração de seu trabalho corporal e mental, e ao gozo de sua potência libidinal.

São inúmeros os trabalhos que se inspiraram e se inspiram em Frantz Fanon, não apenas no campo da psicologia, mas também nas chamadas ciências sociais e nas humanidades em geral. Glean Sean Coulthard escreveu “Pele vermelha, máscaras brancas”, em 2014, para pensar os dilemas enfrentados pelas comunidades indígenas na sociedade canadense. Embora as duas obras guardem uma distância no tempo e sejam diferentes por tomar como modelo sociedades distintas, elas têm em comum o mérito de não abrir mão da dimensão material e simbólica para a compreensão dos processos de dominação e de racialização. Coulthard retoma a noção marxista de “acumulação primitiva” para evidenciar que esta não é uma etapa vencida pela suposta fase “pré-capitalista” do capital, mas a condição necessária e permanente à exploração das sociedades e grupos contemporâneos. Por essa razão, as comunidades indígenas canadenses continuam a viver processos de expropriação e de espoliação. A política de reconhecimento no marco do Estado liberal canadense não é outra coisa senão a tentativa de ocultar uma política violenta de assimilação dos povos indígenas para que suas terras possam servir aos interesses da acumulação capitalista.

Em “Pele marrom, máscaras brancas”, publicada em 2011, Hamid Dabashi atualiza a problemática fanoniana da raça para entendê-la não mais na sua relação com o colonialismo, mas em seu exercício do poder imperial no mundo contemporâneo. Para seguir adiante com seu projeto imperial de dominação, o governo estadunidense alicia pessoas de origem árabe para levar a cabo seus interesses anti-árabes. Assim, inúmeros intelectuais iraquianos imigrantes foram usados para representar de forma negativa seu país de origem, contribuindo para a produção de uma narrativa que justificasse a invasão do Iraque em 2003. O retrato produzido por Dabashi é muito diferente da fratura produzida pelo “exílio intelectual” naqueles que, como Edward Said, souberam fazer dessa situação um locus de enunciação que permitisse uma crítica dura e bastante consistente ao império sem perder de vista os problemas de suas próprias sociedades de origem. O “informante nativo” serve de correia de transmissão dos interesses do império e revela as múltiplas faces que os processos de racialização podem assumir. 

Finalmente, em “Pele marrom, mentes brancas”, de 2013, E. J. R. David aborda os processos históricos que conformaram e ainda conformam a internalização da opressão racial pelos filipinos e pelos filipino-americanos. Assujeitadas às colonizações espanhola e estadunidense, as Filipinas sofreram um processo de dominação violento pelo qual a marca da inferioridade se inscreveu na subjetividade daquele país. Como descreveu Fanon, o colonialismo implica a ocupação de um território, a imposição de uma cultura, a inferiorização do colonizado e a produção de estruturas políticas e econômicas que garantam a dominação. Nesse sentido, David não se preocupa apenas em descrever os mecanismos da dominação, mas também a produzir uma psicologia da libertação, uma práxis voltada para a superação desse sentimento de inferioridade. O autor desenvolveu a “Escala de Mentalidade Colonial” pela qual busca aferir o grau de internalização do sentimento de inferioridade cujas consequências psicológicas são inúmeras, tais como a produção de sintomas depressivos, ansiosos, psicossomáticos e confusões de identidade.

Talvez a injunção de que se deve colocar “máscaras brancas” sob peles não-brancas seja o solo comum dos universos sociais e históricos tão heterogêneos destacados por Fanon, Coulthard, Dabashi e David. Apesar de distantes no tempo e no espaço, os autores revelam que a raça é e continua sendo o operador central do mundo moderno/colonial. Vivemos num mundo racializado a despeito do fato de que as dinâmicas raciais ganham feições específicas a depender de processos sociais e históricos singulares. Diante de tantos “condenados da terra”, por que continuamos a insistir numa psicologia branca, individualista, pequena burguesa e colonial? O projeto de uma práxis liberatória continua um projeto inacabado e ainda temos muito a fazer para que o mínimo de dignidade seja conferido às grandes parcelas da população destituídas de sua humanidade.



Por Marcos de Jesus Oliveira (17.04.2024)
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Resenha

A dimensão psíquica do fenômeno migratório

A migração tende a ser considerada um fenômeno multicausal. Isso quer dizer que fatores econômicos, sociais, políticos e culturais influenciam os processos migratórios, condicionando sua manifestação. Há quem diga que fatores neurobiológicos também participam das motivações para migrar, pois estudos já indicaram uma presença mais significativa da dopamina, neurotransmissor ligado à motivação, em pessoas que migram. O livro “Quem da pátria sai a si mesmo escapa? – um estudo psicanalítico sobre a migração” de Daniela Meirelles Escobari (Editora Escuta, 2009) foca nas motivações psíquicas que impulsionam a migração. Ao endereçar a dimensão psíquica do fenômeno, a autora não pretende realizar a defesa de um determinismo psíquico no sentido de que a causa psíquica seria preponderante às demais, mas de um recorte a partir da clínica psicanalítica. Tampouco, se trata de reduzir as inúmeras possibilidades de causalidade psíquica a apenas uma, mas de explorá-las a partir do universo de sentido produzido pelos sujeitos que migram em sua experiência analítica.

O sujeito que decide migrar se encontra diante de um impasse psíquico cuja resolução busca no deslocamento de um país para outro, tendo uma “crise psíquica” como instauradora do processo. Do ponto de vista da psicanálise, o corpo materno (Das Ding), em sua prática de cuidado cotidiano, exerce uma atração poderosa sobre a criança que, em seu devir como sujeito, precisa se separar dele em certo momento de sua vida. No universo da pesquisa realizada pela autora, a saída de um país para outro representa a reatualização da problemática do afastamento do corpo materno. Uma das pacientes narradas por Escobari fala que ser estrangeira é ser desconhecida, não ter tantas cobranças. Sair de um país para outro representa sair do universo de sentido libidinalmente investido pelo corpo materno que, às vezes, pode se tornar sufocante, para experienciar outros universos e, finalmente, pela separação geográfica realizar a separação psíquica.

A exploração que a autora faz da noção de “objeu” de Pierre Fédida (1978) é interessante. Na palavra “objeu” é possível ouvir as seguintes palavras: objet (objeto), jeu (jogo) e jet (jogar). Quando Freud (1969b) descreve seu neto lançando o carretel e pronunciando a expressão “fort-da”, a situação é interpretada como um momento em que a criança está aprendendo a lidar com a ausência/presença da mãe. Fundamental na constituição psíquica da criança, o jogo “fort-da” supõe certa destruição, no nível do fantasma, do objeto materno para que a possibilidade de uma simbolização criativa possa emergir. Lançar o carretel para longe é uma forma de encontrar outra forma de lidar com o objeto materno, pois abre o psiquismo à representação da ausência pela via da alucinação negativa. O desejo surge dessa capacidade simbólica de prescindir do objeto materno para que sua ausência possa ser ocupada por outros objetos substitutivos. Sujeitos em processo de migração estão, inconscientemente, em busca pela ruptura com a coisa materna para que a produção simbólico-desejante seja possível.

Se a hipótese segundo a qual o que impulsiona o sujeito a migrar é a necessidade de separação do corpo materno estiver correta, então a pesquisa sobre a questão do luto migratório, tema bastante investigado nos estudos de migração, faz todo sentido. Freud (1969a) postulou que o luto e a melancolia se igualam porque ambas são uma reação a uma perda de objeto. No entanto, o que diferencia o luto da melancolia é que esta última implica a retenção do objeto perdido na exterioridade no interior do psiquismo enquanto o primeiro implica um desligamento libidinal do objeto perdido e o investimento em novos objetos. A depressão, considerada um quadro clínico bastante frequente entre pessoas que migram, revela os impasses dessa perda. Numa chave de leitura lacaniana (LACAN, 2007), a migração seria um espécie de sinthome, uma escrita que busca ser a solução para a difícil tarefa de encontrar um suporte ao real do corpo materno. Ir para um novo país em que a língua falada não é a materna, a língua do gozo recheada de sensorialidade e experiências de prazer e desprazer, lalangue, como escreve Lacan, é se afastar do corpo materno que, como o canto da sereia, seduz, mas também pode levar à morte do desejo.

Referências bibliográficas:

FÉDIDA, P. “L’objeu: objet, jeu et enfance”. In: L’absence. Paris: Gallimard, 1978.

FREUD, S. “Luto e melancolia”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969a. v. XIV.

FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969b. v. XVIII

LACAN, J. O Seminário, Livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

Por Marcos de Jesus Oliveira (01.04.2024)

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Resenha

Por uma psicologia indígena

Como nas outras resenhas, não se pretende aqui resumir uma obra tão densa e interessante como é “Dialogical multiplication: principles for an indigenous psychology” de Danilo Silva Guimarães. Trata-se antes de apresentar uma breve leitura a partir daquilo que mais me chamou a atenção como forma de despertar o interesse do leitor pela obra. Um dos aspectos mais interessantes da discussão proposta pelo autor que é indígena e professor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo se refere a sua crítica às pretensões de universalidade da psicologia moderna e de como a psicologia indígena vai produzindo um conhecimento nas bordas dos saberes psicológicos hegemônicos. Isso porque, de modo geral, a psicologia tem elidido a dimensão cultural de suas indagações teórico-conceituais com a ilusão de que assim conseguirá produzir um conhecimento que transcende o contexto onde é produzido, sendo válido em qualquer tempo ou lugar.

Toda psicologia é indígena, defende Guimarães. Afinal, indígena se refere àquelas pessoas que são originárias de um determinado território. Toda psicologia trará as marcas do lugar em que foi forjada. Tal perspectiva tensiona o eurocentrismo que faz crer que o conhecimento psicológico moderno transcende as coordenadas do tempo e do espaço em que foi teorizado. É comum se usar o termo “etnopsicologia” para se referir aos povos não-ocidentais como se os ocidentais também não fossem um “etno”, um grupo culturalmente específico. O “etno” são sempre os outros tratados como o “particular”. A psicologia ocidental também é uma etnopsicologia porque suas elaborações teórico-conceituais nasceram para dar conta da noção de pessoa própria a seu contexto histórico-cultural. E, conforme já demonstrou extensivamente a antropologia, a noção de pessoa varia de cultura para cultura.

A psicologia cultural está interessada em entender como os processos de mediação semiótico-cultural estabelecem referências pelas quais o sujeito se relaciona consigo mesmo, com o outro e com o mundo. Se, em um determinado grupo social, o que comumente chamamos de natureza é tido como tendo alma, consciência e/ou vontade e, para outro grupo social, essa “mesma natureza” é tida como um mero recurso a serviço da satisfação de suas necessidades, isso acontece porque as referências semiótico-culturais são diferentes para os dois grupos sociais em questão. Assim, o psicólogo não pode prescindir da compreensão de como determinado sujeito medeia sua relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo em seus processos de intervenção sob o risco de que, se não o fizer, tenderá a ser etnocêntrico, isto é, impor seus próprios padrões referenciais a alguém que não os compartilha.O diálogo entre culturas não é uma tarefa fácil ou simples como supôs uma larga tradição do pensamento ocidental que creu poder objetivar o outro. O diálogo interétnico envolve equívocos, tentativas falhas de tradução, além de relações de ambivalência em decorrência do choque cultural causado pelo encontro com a alteridade. Nesse sentido, a tarefa fundamental do psicólogo é estar atento à parcialidade das perspectivas, de maneira a não colonizar o outro com suas pretensões de verdade. O outro é, na tradição da ética de Emmanuel Lévinas, o que impede que o eu seja idêntico a si mesmo, tendo por consequência a impossibilidade de um saber total ou absoluto. O desafio é atravessar os “muros semióticos” (semiotic walls) pelos quais uma cultura produz ativamente a incapacidade de dialogar com outra cultura.

A psicologia indígena não é uma psicologia sobre os indígenas, mas uma resposta ao encontro dos indígenas com o colonizador pela qual se busca a produção de um conhecimento complexo e fronteiriço. Tal conhecimento busca oferecer estratégias de resistência e de resiliência diante das violências físicas, materiais e simbólicas que afligem as comunidades indígenas ainda hoje. O equívoco que os europeus produziram e ainda produzem sobre os não-europeus pode ser ressignificado desde que se compreenda que o conhecimento não se faz apenas por um gesto de reflexão solitária em que a razão seria o seu agente fiador, como no caso da tradição cartesiana. Muitas culturas indígenas entendem que a compreensão mútua só é possível quando corporalidades distintas compartilham experiências sensitivas comuns que criam compartilhamentos extra-verbais, isto é, não alcançados pela razão, próximo do que intelectuais decoloniais chamam de “corpo-política”.

Por Marcos de Jesus (13.02.2024)

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Resenha

A descolonização da psicologia

O livro “Decolonial psychology: toward anticolonial theories, research, training, and practice” [Psicologia decolonial: rumo a teorias, pesquisa, treinamento e prática anti-coloniais], recém-publicado pela editora da Associação Americana de Psicologia nos Estados Unidos e organizado por Lillian Comas-Díaz, Hector Y. Adames e Nayeli Y. Chavez-Dueñas, se soma aos esforços envidados por inúmeros intelectuais, psicólogos e ativistas sociais em busca de caminhos para a descolonização da práxis psicológica nas últimas décadas. Embora o termo descolonização possa assumir diferentes significados, no livro ele tem o sentido de liberar a psicologia de suas premissas eurocêntricas, burguesas, racistas, homo/transfóbicas e individualistas. A proposta representa um importante tensionamento da psicologia hegemônica que, desde seu surgimento enquanto disciplina científica no século XIX, tem servido aos interesses dos grupos dominadores, contribuindo para a exclusão e marginalização de grupos sociais diversos.

Embora não sejam as únicas, Frantz Fanon, Paulo Freire e Ignácio Martín-Baró comparecem como figuras importantes para os projetos de descolonização dos saberes psi em vários artigos do livro. Isso porque Fanon contribuiu com uma discussão sobre os efeitos do regime colonial na produção da subjetividade de brancos e de negros. Para o filósofo martinicano, a produção social do sentimento de inferioridade do negro é contemporâneo à produção do sentimento de superioridade do branco, tendo por consequência o sofrimento psíquico para o negro. Em relação a Paulo Freire, a base dialógica sobre a qual seu pensamento se assenta é revelador de como ação e reflexão não são dois universos incomunicáveis. A ação modifica a reflexão e a reflexão ajuda a pensar a ação de uma forma inteiramente nova, enriquecendo-a. O processo de conscientização freiriano supõe que o sujeito que conscientiza se conscientiza a si mesmo no ato de conscientizar o outro. Tal compreensão rompe com a ideia de que o pensamento crítico é apanágio apenas de intelectuais ou pessoas letradas; sujeitos subalternos também possuem criticidade e todos podem aprender com suas perspectivas.

Por sua vez, Ignácio Martín-Baró elaborou a chamada psicologia da libertação pela qual propunha não apenas a intervenção junto ao sujeito que sofre, mas a transformação das estruturas que o fazem o sofrer. Assim, o teórico ensejou uma melhor compreensão de que a saúde mental não é uma realidade puramente biológica ou um ato individual, mas dependente do contexto social e histórico. Não há como ser psiquicamente saudável em um mundo que insiste em desumanizar, alienar e humilhar pessoas. A psicologia precisa se debruçar sobre a dimensão sócio-política dos sofrimentos, pois, se não o fizer, estará contribuindo para sua produção e para a alienação dos sujeitos. A psicologia pode e deve aprender com os saberes das comunidades excluídas e colonizadas, tais como indígenas, afro-descendentes e população queer.

E a propósito dos saberes indígenas e afro-descendentes, vale lembrar os conceitos de ancestralidade e de vincularidad, centrais em alguns dos textos do livro. A ancestralidade traz a possibilidade de conexão e pertencimento, favorecendo a produção de resistência e resiliência enraizadas na experiência histórica e concreta dos grupos oprimidos, um processo coletivo. Própria à cosmovisão indígena andina, a vincularidad é essencial para pensar a construção dos laços e das relações entre os seres humanos e destes com o universo mais-que-humano tal como a natureza. O anti-antropocentrismo indígena é a chave para vivências individuais e coletivas menos coloniais e mais respeitosas em relação à pluralidade de seres com os quais os humanos coabitam a terra. O desenvolvimento da espiritualidade como uma dimensão fundamental da vida é essencial para as experiências de saúde e de bem-estar, pois, através dela, o ser humano tem a oportunidade de refletir sobre qual é o seu lugar no cosmos junto a uma infinidade de muitos outros seres igualmente importantes.

Por óbvio que seja, é bom salientar, os breves parágrafos acima não pretendem resumir o livro cuja envergadura exigiria muitas páginas de comentários. Pretendem antes convidar o leitor a se debruçar sobre a obra e contribuir ele mesmo e a seu próprio modo para a descolonização dos saberes e das práticas psi. Imaginar uma psicologia em que caibam muitas psicologias – para parafrasear o lema do movimento neozapatista – é tarefa fundamental do nosso tempo. Isso pode contribuir, decisivamente, para a diminuição do sofrimento decorrente dos processos de colonização cujos efeitos ainda se fazem presentes nas subjetividades contemporâneas e, infelizmente, ainda geram adoecimento, morte e destruição.

Por Marcos de Jesus (25.01.2024).

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Resenha

A escuta clínica do mundo mais-que-humano

O livro “Psicologia do antropoceno: ser humano em um mundo mais-que-humano” de Matthew Adams é uma contribuição interessante a uma psicologia preocupada em contemplar a relação entre humanos e não-humanos de forma não-hierárquica e não-antropocêntrica, já que tradicionalmente a psicologia dita moderna tomou o indivíduo como centro de sua análise e elaboração teórica, seguindo a tendência amplamente compartilhada pelas humanidades e pelas ciências sociais da época. Adams inicia a obra com a discussão sobre a relação que a psicologia experimental manteve com os animais a partir dos cães do fisiologista russo Ivan Pavlov, comumente conhecido como o descobridor dos reflexos condicionados e como um dos precursores da escola comportamentalista em psicologia. Seu esforço se encaminha no sentido de imaginar uma outra relação possível entre o “pesquisador” e os “animais pesquisados” com destaque às suas mútuas influências e implicações recíprocas, rompendo com a cisão antropocêntrica segundo a qual o pesquisador tem pleno controle sobre o “objeto” em seu trabalho no laboratório. Dito de forma resumida, os animais não são seres passivos, mas também possuem agência.

O livro também apresenta as experiências de pessoas que se alimentam de animais e aquelas que não se alimentam com o intuito de refletir sobre os aspectos cognitivos, comportamentais e emocionais aí envolvidos. Quando o ato de matar um animal é tido como uma ação pela qual o ser humano se serve de um “recurso natural” para satisfazer sua fome, apaga-se qualquer possibilidade de reconhecimento de sua responsabilidade frente ao matar. Adams busca ensaiar uma ética relacional que, apoiada em Donna Haraway, diferencia o “matar” do “tornar matável” como forma de imaginar outros futuros alimentares. Há ainda um importante debate sobre o mal-estar manifestado por pessoas que vivem em lugares impactados por transformações ambientais. Solastalgia é o nome dado ao estresse e ao luto desencadeados em pessoas que têm que lidar com a perda de suas conexões (apego) com o lugar em que vivem em virtude de mudanças ambientais.

Os encontros multi-espécies, comuns em sociedades indígenas, sobretudo, as de tendências animista, é o ponto mais interessante do livro, com elementos fundamentais à produção de uma escuta sensível à fase geológica atual do planeta terra em que o impacto humano, sobretudo, os advindos dos países do Norte global em decorrência do sistema moderno/colonial capitalista, conhecida como antropoceno ou capitaloceno, tem gerado transformações ambientais de proporções inimagináveis. Nessa escuta, o universo não-humano subjacente às narrativas das pessoas, notadamente os indígenas, mas não apenas eles, suas relações com animais, plantas, rochas, montanhas, objetos encantados, lugares sagrados, entidades espirituais etc., é tão digno de atenção, consideração e respeito como o universo de relações entre seres humanos. É uma saída para a famosa escuta psicológica centrada no papai/mamãe em busca dos “outros significativos” que podem ser humanos ou não-humanos, numa afirmação de mundos materiais compósitos e plurais que não se deixam colonizar pela ideia de que tudo é uma construção social ou linguística.

A obra é indubitavelmente um convite para refletir sobre a relação que os seres humanos mantêm com o mundo mais-que-humano, esse outro enigmático, na maioria das vezes, subalterno, que não fala, como o gato que observa Jacques Derrida enquanto se despe, fazendo-o se indagar se os felinos têm ou não pudor e se deveria sentir vergonha diante daquele cujo olhar atento quanto obstinado se apresenta não como um mistério a ser solucionado, mas como aquilo que mantém a impossibilidade de qualquer certeza final ou absoluta. Trata-se de um gesto pelo qual se tenta manter a alteridade do outro sem colonizá-lo com conceitos, ideias e pensamentos pré-concebidos. Para dizê-lo de outro modo, é uma chance para rever responsabilidades [response-abilities], e o impacto da ação humana na terra com vistas à produção de uma nova subjetividade e, obviamente, de uma nova psicologia.

Por Marcos de Jesus (14.01.2024).

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