Resenha

A descolonização da psicologia

O livro “Decolonial psychology: toward anticolonial theories, research, training, and practice” [Psicologia decolonial: rumo a teorias, pesquisa, treinamento e prática anti-coloniais], recém-publicado pela editora da Associação Americana de Psicologia nos Estados Unidos e organizado por Lillian Comas-Díaz, Hector Y. Adames e Nayeli Y. Chavez-Dueñas, se soma aos esforços envidados por inúmeros intelectuais, psicólogos e ativistas sociais em busca de caminhos para a descolonização da práxis psicológica nas últimas décadas. Embora o termo descolonização possa assumir diferentes significados, no livro ele tem o sentido de liberar a psicologia de suas premissas eurocêntricas, burguesas, racistas, homo/transfóbicas e individualistas. A proposta representa um importante tensionamento da psicologia hegemônica que, desde seu surgimento enquanto disciplina científica no século XIX, tem servido aos interesses dos grupos dominadores, contribuindo para a exclusão e marginalização de grupos sociais diversos.

Embora não sejam as únicas, Frantz Fanon, Paulo Freire e Ignácio Martín-Baró comparecem como figuras importantes para os projetos de descolonização dos saberes psi em vários artigos do livro. Isso porque Fanon contribuiu com uma discussão sobre os efeitos do regime colonial na produção da subjetividade de brancos e de negros. Para o filósofo martinicano, a produção social do sentimento de inferioridade do negro é contemporâneo à produção do sentimento de superioridade do branco, tendo por consequência o sofrimento psíquico para o negro. Em relação a Paulo Freire, a base dialógica sobre a qual seu pensamento se assenta é revelador de como ação e reflexão não são dois universos incomunicáveis. A ação modifica a reflexão e a reflexão ajuda a pensar a ação de uma forma inteiramente nova, enriquecendo-a. O processo de conscientização freiriano supõe que o sujeito que conscientiza se conscientiza a si mesmo no ato de conscientizar o outro. Tal compreensão rompe com a ideia de que o pensamento crítico é apanágio apenas de intelectuais ou pessoas letradas; sujeitos subalternos também possuem criticidade e todos podem aprender com suas perspectivas.

Por sua vez, Ignácio Martín-Baró elaborou a chamada psicologia da libertação pela qual propunha não apenas a intervenção junto ao sujeito que sofre, mas a transformação das estruturas que o fazem o sofrer. Assim, o teórico ensejou uma melhor compreensão de que a saúde mental não é uma realidade puramente biológica ou um ato individual, mas dependente do contexto social e histórico. Não há como ser psiquicamente saudável em um mundo que insiste em desumanizar, alienar e humilhar pessoas. A psicologia precisa se debruçar sobre a dimensão sócio-política dos sofrimentos, pois, se não o fizer, estará contribuindo para sua produção e para a alienação dos sujeitos. A psicologia pode e deve aprender com os saberes das comunidades excluídas e colonizadas, tais como indígenas, afro-descendentes e população queer.

E a propósito dos saberes indígenas e afro-descendentes, vale lembrar os conceitos de ancestralidade e de vincularidad, centrais em alguns dos textos do livro. A ancestralidade traz a possibilidade de conexão e pertencimento, favorecendo a produção de resistência e resiliência enraizadas na experiência histórica e concreta dos grupos oprimidos, um processo coletivo. Própria à cosmovisão indígena andina, a vincularidad é essencial para pensar a construção dos laços e das relações entre os seres humanos e destes com o universo mais-que-humano tal como a natureza. O anti-antropocentrismo indígena é a chave para vivências individuais e coletivas menos coloniais e mais respeitosas em relação à pluralidade de seres com os quais os humanos coabitam a terra. O desenvolvimento da espiritualidade como uma dimensão fundamental da vida é essencial para as experiências de saúde e de bem-estar, pois, através dela, o ser humano tem a oportunidade de refletir sobre qual é o seu lugar no cosmos junto a uma infinidade de muitos outros seres igualmente importantes.

Por óbvio que seja, é bom salientar, os breves parágrafos acima não pretendem resumir o livro cuja envergadura exigiria muitas páginas de comentários. Pretendem antes convidar o leitor a se debruçar sobre a obra e contribuir ele mesmo e a seu próprio modo para a descolonização dos saberes e das práticas psi. Imaginar uma psicologia em que caibam muitas psicologias – para parafrasear o lema do movimento neozapatista – é tarefa fundamental do nosso tempo. Isso pode contribuir, decisivamente, para a diminuição do sofrimento decorrente dos processos de colonização cujos efeitos ainda se fazem presentes nas subjetividades contemporâneas e, infelizmente, ainda geram adoecimento, morte e destruição.

Por Marcos de Jesus (25.01.2024).

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Resenha

A escuta clínica do mundo mais-que-humano

O livro “Psicologia do antropoceno: ser humano em um mundo mais-que-humano” de Matthew Adams é uma contribuição interessante a uma psicologia preocupada em contemplar a relação entre humanos e não-humanos de forma não-hierárquica e não-antropocêntrica, já que tradicionalmente a psicologia dita moderna tomou o indivíduo como centro de sua análise e elaboração teórica, seguindo a tendência amplamente compartilhada pelas humanidades e pelas ciências sociais da época. Adams inicia a obra com a discussão sobre a relação que a psicologia experimental manteve com os animais a partir dos cães do fisiologista russo Ivan Pavlov, comumente conhecido como o descobridor dos reflexos condicionados e como um dos precursores da escola comportamentalista em psicologia. Seu esforço se encaminha no sentido de imaginar uma outra relação possível entre o “pesquisador” e os “animais pesquisados” com destaque às suas mútuas influências e implicações recíprocas, rompendo com a cisão antropocêntrica segundo a qual o pesquisador tem pleno controle sobre o “objeto” em seu trabalho no laboratório. Dito de forma resumida, os animais não são seres passivos, mas também possuem agência.

O livro também apresenta as experiências de pessoas que se alimentam de animais e aquelas que não se alimentam com o intuito de refletir sobre os aspectos cognitivos, comportamentais e emocionais aí envolvidos. Quando o ato de matar um animal é tido como uma ação pela qual o ser humano se serve de um “recurso natural” para satisfazer sua fome, apaga-se qualquer possibilidade de reconhecimento de sua responsabilidade frente ao matar. Adams busca ensaiar uma ética relacional que, apoiada em Donna Haraway, diferencia o “matar” do “tornar matável” como forma de imaginar outros futuros alimentares. Há ainda um importante debate sobre o mal-estar manifestado por pessoas que vivem em lugares impactados por transformações ambientais. Solastalgia é o nome dado ao estresse e ao luto desencadeados em pessoas que têm que lidar com a perda de suas conexões (apego) com o lugar em que vivem em virtude de mudanças ambientais.

Os encontros multi-espécies, comuns em sociedades indígenas, sobretudo, as de tendências animista, é o ponto mais interessante do livro, com elementos fundamentais à produção de uma escuta sensível à fase geológica atual do planeta terra em que o impacto humano, sobretudo, os advindos dos países do Norte global em decorrência do sistema moderno/colonial capitalista, conhecida como antropoceno ou capitaloceno, tem gerado transformações ambientais de proporções inimagináveis. Nessa escuta, o universo não-humano subjacente às narrativas das pessoas, notadamente os indígenas, mas não apenas eles, suas relações com animais, plantas, rochas, montanhas, objetos encantados, lugares sagrados, entidades espirituais etc., é tão digno de atenção, consideração e respeito como o universo de relações entre seres humanos. É uma saída para a famosa escuta psicológica centrada no papai/mamãe em busca dos “outros significativos” que podem ser humanos ou não-humanos, numa afirmação de mundos materiais compósitos e plurais que não se deixam colonizar pela ideia de que tudo é uma construção social ou linguística.

A obra é indubitavelmente um convite para refletir sobre a relação que os seres humanos mantêm com o mundo mais-que-humano, esse outro enigmático, na maioria das vezes, subalterno, que não fala, como o gato que observa Jacques Derrida enquanto se despe, fazendo-o se indagar se os felinos têm ou não pudor e se deveria sentir vergonha diante daquele cujo olhar atento quanto obstinado se apresenta não como um mistério a ser solucionado, mas como aquilo que mantém a impossibilidade de qualquer certeza final ou absoluta. Trata-se de um gesto pelo qual se tenta manter a alteridade do outro sem colonizá-lo com conceitos, ideias e pensamentos pré-concebidos. Para dizê-lo de outro modo, é uma chance para rever responsabilidades [response-abilities], e o impacto da ação humana na terra com vistas à produção de uma nova subjetividade e, obviamente, de uma nova psicologia.

Por Marcos de Jesus (14.01.2024).

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