Sem categoria

Existem pessoas indígenas com autistas?

O autismo é uma categoria diagnóstica aplicável apenas às pessoas ocidentais ou está presente em todas as culturas? Quais são as concepções que grupos indígenas, por exemplo, têm sobre o autismo? É possível um diálogo intercultural sobre o autismo em que a visão biomédica ocidental então hegemônica não se imponha a outras compreensões? Como a cultura influencia o desenvolvimento das funções psicológicas superiores tais como a memória, a linguagem, a percepção, a atenção? A neuropsicologia tem considerado de forma suficientemente adequada a variável cultural, sobretudo, no que diz respeito à diferença entre grupos sociais sem hierarquizações e/ou patologizações? Os processos de reabilitação neuropsicológica devem ser os mesmos para todos independente das diferenças culturais? É possível ou mesmo desejável um pluralismo terapêutico?

Não se pretende responder a nenhuma dessas questões aqui; quer-se antes com elas revelar o quão profícuo pode ser pensar os ditos transtornos do neurodesenvolvimento a partir de culturas e epistemologias não ocidentais ou pouco ocidentalizadas. O instigante é manter as questões a um contínuo debate pelo qual é possível fazer emergir diálogos frutíferos e desdobramentos fecundos. Essa parece ser uma das principais razões para indicar a leitura do livro “A pessoa autista: uma análise dos princípios andinos da reciprocidade e da complementaridade” de Catalina López Chávez. Nele a autora busca compreender os modos pelos quais as comunidades indígenas andinas produzem sentidos e significados em torno da pessoa autista. Em lugar de simplesmente assumir que os conhecimentos indígenas são insuficientes para lidar com o autismo, como amiúde se faz, a autora realiza um fecundo e promissor diálogo entre as visões indígenas sobre o autismo e os modelos explicativos ocidentais. Seu paradigma é o da neurodiversidade como forma de evitar cair em binarismo excludentes como o do normal e do patológico.

O trabalho conduzido pela autora para tratar crianças indígenas com autismo está diretamente ligado ao contato com a natureza, não apenas porque a natureza promove a integração sensorial, mas, sobretudo, porque, na cosmovisão andina, ela representa a mãe-terra, Pachamama. A civilização andina é essencialmente relacional e, se, como sugerem os diagnósticos contemporâneos do transtorno do espectro autista desde Leo Kanner, o autismo implica um déficit relacional (sic), perceber a relação das crianças autistas com a natureza torna, no mínimo, problemática essa suposição. Em sociedades antropocêntricas como as ocidentais, há uma suposição de que seres humanos estabelecem vínculos apenas com outros seres humanos. Por outro lado, em várias cosmovisões indígenas, os seres humanos não se vinculam apenas a outros seres humanos, mas igualmente ao mundo não-humano que, para eles, também são humanos no sentido de serem dotados daquilo que os ocidentais vêem como exclusivo da humanidade.

Na perspectiva andina, segundo a autora, o autismo é resultado de um desequilíbrio cosmogônico por conta da destruição da mãe natureza e, de modo simultâneo, um presente dos céus como expressão da diversidade própria ao ser humano e, por isso, devem ser tratados com compreensão e consideração. Por essa razão, eu diria, o tratamento do autismo envolve um cuidado com a natureza, pois tudo está relacionado. Quando cuidamos da natureza, estamos cuidando dos seres humanos porque um está diretamente conectado ao outro. A noção andina de vincularidad expressa a relação que os seres humanos mantêm com seu território e com a natureza. Nas comunidades, as interações se dão a partir do dar, do receber e do devolver. Quando a natureza me dá algo como o alimento, eu recebo e lhe devolvo algo como, por exemplo, um ato de cuidado para que ela se regenere e floresça. Por isso, as crianças são, desde muito cedo, incentivadas a desenvolver um “eu-comunitário”.

Em uma entrevista, Catalina Chávez chega mesmo a se perguntar, de forma provocadora, se o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade existe ou se o que as crianças ditas hiperativas têm é um “transtorno déficit de contato com a natureza”. Muito se especula sobre as causas do autismo e dos transtornos do neurodesenvolvimento. A oposição entre organogênese e psicogênese parece já superada e é mais comum admitir que os transtornos do neurodesenvolvimento são resultado da interação entre biologia e ambiente. A visão andina agrega um elemento a mais, a espiritualidade. A espiritualidade tem a ver com o que Sigmund Freud descreveu como o “sentimento oceânico”. O avanço técnico e a instrumentalização da natureza permitem cada vez menos às pessoas ocidentais o sentimento de conexão oceânica com o cosmos. E nisso está um déficit de relacionalidade dos ocidentais. Ora, e se usássemos essa “medida indígena” como medida para diagnosticar o autismo, não teríamos um aumento na contabilidade de casos entre os ocidentais? Se usássemos o déficit relacional com a natureza como critério, certamente o leitor deste texto seria considerado autista caso não o seja. Por mais que a ciência se esforce por subtrair a dimensão da contingência para supostamente ver o universal, é o movimento oposto que parece mais razoável, isto é, o que é necessariamente universal é a contingência.

Por Marcos de Jesus Oliveira (28.05.24)

Facebooktwitterlinkedininstagramflickrfoursquaremail
Sem categoria

A terapia cultural psico-historiográfica de Frederick W. Hickling

“A descolonização da psiquiatria na Jamaica” do médico psiquiatra jamaicano Frederick W. Hickling detalha como a utilização da terapia cultural psico-historiográfica tornou possível desinstitucionalizar pessoas com sofrimento mental grave cujo confinamento psiquiátrico ainda hoje é a expressão de séculos de opressão resultante da “missão civilizatória” europeia e de sua ciência iniciada em 1492 com a invasão da América. A experiência de realizar sócio-drama e escrever poesias sobre o processo de colonização por parte daqueles sobre quem pesa o estigma da loucura revelam a importância que a recuperação da história tem ou pode ter na produção da saúde mental no contexto das sociedades pós-coloniais quando transformada em produção artística, um momento expressivo de apropriação coletiva e singular. Na obra, psiquiatria, psicologia, história, etnologia e arte se unem em busca de referenciais capazes de gerar outras modalidades de laços sociais cuja teleologia não passe pela hierarquização da humanidade, mas pelo reconhecimento de humanos (e não-humanos) plurais e diversos. 

Hoje mais do que nunca precisamos de uma terapia cultural psico-historiográfica, não apenas porque ainda vivemos num mundo marcado por aquilo que Aníbal Quijano designou como colonialidade, mas também porque o contemporâneo insta o sujeito a denegar seus rastros históricos. Para dizê-lo de outro modo, o individualismo como uma ideologia própria à lógica de vida imposta pela burguesia instituiu o mito do “self-made man”, do sujeito empreendedor de si.  Nessa sociedade, a maioria se torna uma espécie de Robinson Crusoé no sentido de ter que criar para si a ilusão de que deve construir sua própria vida como se essa não estivesse em relação de interdependência às demais, e que o sucesso ou o fracasso depende exclusivamente de escolhas individuais. Muitas culturas de povos afro-diaspóricas insistem na importância da ancestralidade e isso é, sem dúvida alguma, uma forma de resistência em relação à tentativa de apagamento da coletividade como suporte necessário para um ser/estar no mundo digno. A ideia de ancestralidade lembra que somos sujeitos em falta, de que há uma dívida simbólica de uma geração em relação a outra que não se paga, produzindo um elo de ligação e de sentido para além do aqui/agora.

No seminário 17, intitulado “O avesso da psicanálise”, Jacques Lacan conta, bastante surpreso, sua experiência de análise com três jovens de Togo. Sua surpresa estava relacionada ao fato de que, apesar dos jovens terem vivido sua infância em seu país de origem, o inconsciente deles pareciam funcionar segundo a lógica do Édipo europeu. Suas lembranças de infância não traziam as crenças e valores de sua cultura, pois pareciam encobertas pela lógica familialista imposta pelo imperialismo francês. Quando narravam as experiências  de seu grupo social de origem, o faziam como um etnógrafo, de forma objetiva e distante, sem o investimento libidinal que amiúde acompanham as narrativas da infância. Seus inconscientes estavam edipianizados, colonizados pelo discurso do mestre, imposto a ferro e fogo, como sói acontecer no colonialismo. A terapia cultural psico-historiográfica de Frederick W. Hickling teria um papel muito interessante a desempenhar nesse contexto, já que favorece a apropriação de suas histórias não como no relato jornalístico ou antropológico, mas pelas modalidades de gozo próprio ao universo simbólico em que nasceram e cresceram, operando uma descolonização pela saída do cativeiro edípico-colonial.

Por Marcos de Jesus Oliveira (26.05.2024)

Facebooktwitterlinkedininstagramflickrfoursquaremail
Sem categoria

Pele negra, vermelha, marrom…, máscaras brancas!

“Pele negra, máscaras brancas” [1952] de Frantz Fanon se tornou um clássico para os debates sobre a construção de uma “psicologia pós e/ou decolonial”. O motivo para tanto se deve à agudeza das elaborações teóricas do filósofo e psiquiatra martinicano. Ninguém antes dele parece ter descrito com tanta minúcia os meandros estruturais, econômicos, sociais e psicológicos presentes nos processos de dominação colonial e de racialização. Partindo de três autores consagrados pelo chamado pensamento ocidental, a saber, Hegel, Marx e Freud, Fanon mostrará o quanto a dimensão material-econômica da dominação não se opõe à simbólico-psicológica, pois as duas estão intimamente entrelaçadas a tal ponto de que uma não existe sem a outra. Essas dimensões estão coladas pela ideia de raça, uma tecnologia do poder que torna possível expor um determinado sujeito, notadamente o sujeito de pele negra, à ameaça de morte, seja ela física ou simbólica, assim como à exploração de seu trabalho corporal e mental, e ao gozo de sua potência libidinal.

São inúmeros os trabalhos que se inspiraram e se inspiram em Frantz Fanon, não apenas no campo da psicologia, mas também nas chamadas ciências sociais e nas humanidades em geral. Glean Sean Coulthard escreveu “Pele vermelha, máscaras brancas”, em 2014, para pensar os dilemas enfrentados pelas comunidades indígenas na sociedade canadense. Embora as duas obras guardem uma distância no tempo e sejam diferentes por tomar como modelo sociedades distintas, elas têm em comum o mérito de não abrir mão da dimensão material e simbólica para a compreensão dos processos de dominação e de racialização. Coulthard retoma a noção marxista de “acumulação primitiva” para evidenciar que esta não é uma etapa vencida pela suposta fase “pré-capitalista” do capital, mas a condição necessária e permanente à exploração das sociedades e grupos contemporâneos. Por essa razão, as comunidades indígenas canadenses continuam a viver processos de expropriação e de espoliação. A política de reconhecimento no marco do Estado liberal canadense não é outra coisa senão a tentativa de ocultar uma política violenta de assimilação dos povos indígenas para que suas terras possam servir aos interesses da acumulação capitalista.

Em “Pele marrom, máscaras brancas”, publicada em 2011, Hamid Dabashi atualiza a problemática fanoniana da raça para entendê-la não mais na sua relação com o colonialismo, mas em seu exercício do poder imperial no mundo contemporâneo. Para seguir adiante com seu projeto imperial de dominação, o governo estadunidense alicia pessoas de origem árabe para levar a cabo seus interesses anti-árabes. Assim, inúmeros intelectuais iraquianos imigrantes foram usados para representar de forma negativa seu país de origem, contribuindo para a produção de uma narrativa que justificasse a invasão do Iraque em 2003. O retrato produzido por Dabashi é muito diferente da fratura produzida pelo “exílio intelectual” naqueles que, como Edward Said, souberam fazer dessa situação um locus de enunciação que permitisse uma crítica dura e bastante consistente ao império sem perder de vista os problemas de suas próprias sociedades de origem. O “informante nativo” serve de correia de transmissão dos interesses do império e revela as múltiplas faces que os processos de racialização podem assumir. 

Finalmente, em “Pele marrom, mentes brancas”, de 2013, E. J. R. David aborda os processos históricos que conformaram e ainda conformam a internalização da opressão racial pelos filipinos e pelos filipino-americanos. Assujeitadas às colonizações espanhola e estadunidense, as Filipinas sofreram um processo de dominação violento pelo qual a marca da inferioridade se inscreveu na subjetividade daquele país. Como descreveu Fanon, o colonialismo implica a ocupação de um território, a imposição de uma cultura, a inferiorização do colonizado e a produção de estruturas políticas e econômicas que garantam a dominação. Nesse sentido, David não se preocupa apenas em descrever os mecanismos da dominação, mas também a produzir uma psicologia da libertação, uma práxis voltada para a superação desse sentimento de inferioridade. O autor desenvolveu a “Escala de Mentalidade Colonial” pela qual busca aferir o grau de internalização do sentimento de inferioridade cujas consequências psicológicas são inúmeras, tais como a produção de sintomas depressivos, ansiosos, psicossomáticos e confusões de identidade.

Talvez a injunção de que se deve colocar “máscaras brancas” sob peles não-brancas seja o solo comum dos universos sociais e históricos tão heterogêneos destacados por Fanon, Coulthard, Dabashi e David. Apesar de distantes no tempo e no espaço, os autores revelam que a raça é e continua sendo o operador central do mundo moderno/colonial. Vivemos num mundo racializado a despeito do fato de que as dinâmicas raciais ganham feições específicas a depender de processos sociais e históricos singulares. Diante de tantos “condenados da terra”, por que continuamos a insistir numa psicologia branca, individualista, pequena burguesa e colonial? O projeto de uma práxis liberatória continua um projeto inacabado e ainda temos muito a fazer para que o mínimo de dignidade seja conferido às grandes parcelas da população destituídas de sua humanidade.



Por Marcos de Jesus Oliveira (17.04.2024)
Facebooktwitterlinkedininstagramflickrfoursquaremail