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A terapia cultural psico-historiográfica de Frederick W. Hickling

“A descolonização da psiquiatria na Jamaica” do médico psiquiatra jamaicano Frederick W. Hickling detalha como a utilização da terapia cultural psico-historiográfica tornou possível desinstitucionalizar pessoas com sofrimento mental grave cujo confinamento psiquiátrico ainda hoje é a expressão de séculos de opressão resultante da “missão civilizatória” europeia e de sua ciência iniciada em 1492 com a invasão da América. A experiência de realizar sócio-drama e escrever poesias sobre o processo de colonização por parte daqueles sobre quem pesa o estigma da loucura revelam a importância que a recuperação da história tem ou pode ter na produção da saúde mental no contexto das sociedades pós-coloniais quando transformada em produção artística, um momento expressivo de apropriação coletiva e singular. Na obra, psiquiatria, psicologia, história, etnologia e arte se unem em busca de referenciais capazes de gerar outras modalidades de laços sociais cuja teleologia não passe pela hierarquização da humanidade, mas pelo reconhecimento de humanos (e não-humanos) plurais e diversos. 

Hoje mais do que nunca precisamos de uma terapia cultural psico-historiográfica, não apenas porque ainda vivemos num mundo marcado por aquilo que Aníbal Quijano designou como colonialidade, mas também porque o contemporâneo insta o sujeito a denegar seus rastros históricos. Para dizê-lo de outro modo, o individualismo como uma ideologia própria à lógica de vida imposta pela burguesia instituiu o mito do “self-made man”, do sujeito empreendedor de si.  Nessa sociedade, a maioria se torna uma espécie de Robinson Crusoé no sentido de ter que criar para si a ilusão de que deve construir sua própria vida como se essa não estivesse em relação de interdependência às demais, e que o sucesso ou o fracasso depende exclusivamente de escolhas individuais. Muitas culturas de povos afro-diaspóricas insistem na importância da ancestralidade e isso é, sem dúvida alguma, uma forma de resistência em relação à tentativa de apagamento da coletividade como suporte necessário para um ser/estar no mundo digno. A ideia de ancestralidade lembra que somos sujeitos em falta, de que há uma dívida simbólica de uma geração em relação a outra que não se paga, produzindo um elo de ligação e de sentido para além do aqui/agora.

No seminário 17, intitulado “O avesso da psicanálise”, Jacques Lacan conta, bastante surpreso, sua experiência de análise com três jovens de Togo. Sua surpresa estava relacionada ao fato de que, apesar dos jovens terem vivido sua infância em seu país de origem, o inconsciente deles pareciam funcionar segundo a lógica do Édipo europeu. Suas lembranças de infância não traziam as crenças e valores de sua cultura, pois pareciam encobertas pela lógica familialista imposta pelo imperialismo francês. Quando narravam as experiências  de seu grupo social de origem, o faziam como um etnógrafo, de forma objetiva e distante, sem o investimento libidinal que amiúde acompanham as narrativas da infância. Seus inconscientes estavam edipianizados, colonizados pelo discurso do mestre, imposto a ferro e fogo, como sói acontecer no colonialismo. A terapia cultural psico-historiográfica de Frederick W. Hickling teria um papel muito interessante a desempenhar nesse contexto, já que favorece a apropriação de suas histórias não como no relato jornalístico ou antropológico, mas pelas modalidades de gozo próprio ao universo simbólico em que nasceram e cresceram, operando uma descolonização pela saída do cativeiro edípico-colonial.

Por Marcos de Jesus Oliveira (26.05.2024)

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