Resenha

A dimensão psíquica do fenômeno migratório

A migração tende a ser considerada um fenômeno multicausal. Isso quer dizer que fatores econômicos, sociais, políticos e culturais influenciam os processos migratórios, condicionando sua manifestação. Há quem diga que fatores neurobiológicos também participam das motivações para migrar, pois estudos já indicaram uma presença mais significativa da dopamina, neurotransmissor ligado à motivação, em pessoas que migram. O livro “Quem da pátria sai a si mesmo escapa? – um estudo psicanalítico sobre a migração” de Daniela Meirelles Escobari (Editora Escuta, 2009) foca nas motivações psíquicas que impulsionam a migração. Ao endereçar a dimensão psíquica do fenômeno, a autora não pretende realizar a defesa de um determinismo psíquico no sentido de que a causa psíquica seria preponderante às demais, mas de um recorte a partir da clínica psicanalítica. Tampouco, se trata de reduzir as inúmeras possibilidades de causalidade psíquica a apenas uma, mas de explorá-las a partir do universo de sentido produzido pelos sujeitos que migram em sua experiência analítica.

O sujeito que decide migrar se encontra diante de um impasse psíquico cuja resolução busca no deslocamento de um país para outro, tendo uma “crise psíquica” como instauradora do processo. Do ponto de vista da psicanálise, o corpo materno (Das Ding), em sua prática de cuidado cotidiano, exerce uma atração poderosa sobre a criança que, em seu devir como sujeito, precisa se separar dele em certo momento de sua vida. No universo da pesquisa realizada pela autora, a saída de um país para outro representa a reatualização da problemática do afastamento do corpo materno. Uma das pacientes narradas por Escobari fala que ser estrangeira é ser desconhecida, não ter tantas cobranças. Sair de um país para outro representa sair do universo de sentido libidinalmente investido pelo corpo materno que, às vezes, pode se tornar sufocante, para experienciar outros universos e, finalmente, pela separação geográfica realizar a separação psíquica.

A exploração que a autora faz da noção de “objeu” de Pierre Fédida (1978) é interessante. Na palavra “objeu” é possível ouvir as seguintes palavras: objet (objeto), jeu (jogo) e jet (jogar). Quando Freud (1969b) descreve seu neto lançando o carretel e pronunciando a expressão “fort-da”, a situação é interpretada como um momento em que a criança está aprendendo a lidar com a ausência/presença da mãe. Fundamental na constituição psíquica da criança, o jogo “fort-da” supõe certa destruição, no nível do fantasma, do objeto materno para que a possibilidade de uma simbolização criativa possa emergir. Lançar o carretel para longe é uma forma de encontrar outra forma de lidar com o objeto materno, pois abre o psiquismo à representação da ausência pela via da alucinação negativa. O desejo surge dessa capacidade simbólica de prescindir do objeto materno para que sua ausência possa ser ocupada por outros objetos substitutivos. Sujeitos em processo de migração estão, inconscientemente, em busca pela ruptura com a coisa materna para que a produção simbólico-desejante seja possível.

Se a hipótese segundo a qual o que impulsiona o sujeito a migrar é a necessidade de separação do corpo materno estiver correta, então a pesquisa sobre a questão do luto migratório, tema bastante investigado nos estudos de migração, faz todo sentido. Freud (1969a) postulou que o luto e a melancolia se igualam porque ambas são uma reação a uma perda de objeto. No entanto, o que diferencia o luto da melancolia é que esta última implica a retenção do objeto perdido na exterioridade no interior do psiquismo enquanto o primeiro implica um desligamento libidinal do objeto perdido e o investimento em novos objetos. A depressão, considerada um quadro clínico bastante frequente entre pessoas que migram, revela os impasses dessa perda. Numa chave de leitura lacaniana (LACAN, 2007), a migração seria um espécie de sinthome, uma escrita que busca ser a solução para a difícil tarefa de encontrar um suporte ao real do corpo materno. Ir para um novo país em que a língua falada não é a materna, a língua do gozo recheada de sensorialidade e experiências de prazer e desprazer, lalangue, como escreve Lacan, é se afastar do corpo materno que, como o canto da sereia, seduz, mas também pode levar à morte do desejo.

Referências bibliográficas:

FÉDIDA, P. “L’objeu: objet, jeu et enfance”. In: L’absence. Paris: Gallimard, 1978.

FREUD, S. “Luto e melancolia”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969a. v. XIV.

FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969b. v. XVIII

LACAN, J. O Seminário, Livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

Por Marcos de Jesus Oliveira (01.04.2024)

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