Resenha

Por uma psicologia indígena

Como nas outras resenhas, não se pretende aqui resumir uma obra tão densa e interessante como é “Dialogical multiplication: principles for an indigenous psychology” de Danilo Silva Guimarães. Trata-se antes de apresentar uma breve leitura a partir daquilo que mais me chamou a atenção como forma de despertar o interesse do leitor pela obra. Um dos aspectos mais interessantes da discussão proposta pelo autor que é indígena e professor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo se refere a sua crítica às pretensões de universalidade da psicologia moderna e de como a psicologia indígena vai produzindo um conhecimento nas bordas dos saberes psicológicos hegemônicos. Isso porque, de modo geral, a psicologia tem elidido a dimensão cultural de suas indagações teórico-conceituais com a ilusão de que assim conseguirá produzir um conhecimento que transcende o contexto onde é produzido, sendo válido em qualquer tempo ou lugar.

Toda psicologia é indígena, defende Guimarães. Afinal, indígena se refere àquelas pessoas que são originárias de um determinado território. Toda psicologia trará as marcas do lugar em que foi forjada. Tal perspectiva tensiona o eurocentrismo que faz crer que o conhecimento psicológico moderno transcende as coordenadas do tempo e do espaço em que foi teorizado. É comum se usar o termo “etnopsicologia” para se referir aos povos não-ocidentais como se os ocidentais também não fossem um “etno”, um grupo culturalmente específico. O “etno” são sempre os outros tratados como o “particular”. A psicologia ocidental também é uma etnopsicologia porque suas elaborações teórico-conceituais nasceram para dar conta da noção de pessoa própria a seu contexto histórico-cultural. E, conforme já demonstrou extensivamente a antropologia, a noção de pessoa varia de cultura para cultura.

A psicologia cultural está interessada em entender como os processos de mediação semiótico-cultural estabelecem referências pelas quais o sujeito se relaciona consigo mesmo, com o outro e com o mundo. Se, em um determinado grupo social, o que comumente chamamos de natureza é tido como tendo alma, consciência e/ou vontade e, para outro grupo social, essa “mesma natureza” é tida como um mero recurso a serviço da satisfação de suas necessidades, isso acontece porque as referências semiótico-culturais são diferentes para os dois grupos sociais em questão. Assim, o psicólogo não pode prescindir da compreensão de como determinado sujeito medeia sua relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo em seus processos de intervenção sob o risco de que, se não o fizer, tenderá a ser etnocêntrico, isto é, impor seus próprios padrões referenciais a alguém que não os compartilha.O diálogo entre culturas não é uma tarefa fácil ou simples como supôs uma larga tradição do pensamento ocidental que creu poder objetivar o outro. O diálogo interétnico envolve equívocos, tentativas falhas de tradução, além de relações de ambivalência em decorrência do choque cultural causado pelo encontro com a alteridade. Nesse sentido, a tarefa fundamental do psicólogo é estar atento à parcialidade das perspectivas, de maneira a não colonizar o outro com suas pretensões de verdade. O outro é, na tradição da ética de Emmanuel Lévinas, o que impede que o eu seja idêntico a si mesmo, tendo por consequência a impossibilidade de um saber total ou absoluto. O desafio é atravessar os “muros semióticos” (semiotic walls) pelos quais uma cultura produz ativamente a incapacidade de dialogar com outra cultura.

A psicologia indígena não é uma psicologia sobre os indígenas, mas uma resposta ao encontro dos indígenas com o colonizador pela qual se busca a produção de um conhecimento complexo e fronteiriço. Tal conhecimento busca oferecer estratégias de resistência e de resiliência diante das violências físicas, materiais e simbólicas que afligem as comunidades indígenas ainda hoje. O equívoco que os europeus produziram e ainda produzem sobre os não-europeus pode ser ressignificado desde que se compreenda que o conhecimento não se faz apenas por um gesto de reflexão solitária em que a razão seria o seu agente fiador, como no caso da tradição cartesiana. Muitas culturas indígenas entendem que a compreensão mútua só é possível quando corporalidades distintas compartilham experiências sensitivas comuns que criam compartilhamentos extra-verbais, isto é, não alcançados pela razão, próximo do que intelectuais decoloniais chamam de “corpo-política”.

Por Marcos de Jesus (13.02.2024)

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