Resenha

A escuta clínica do mundo mais-que-humano

O livro “Psicologia do antropoceno: ser humano em um mundo mais-que-humano” de Matthew Adams é uma contribuição interessante a uma psicologia preocupada em contemplar a relação entre humanos e não-humanos de forma não-hierárquica e não-antropocêntrica, já que tradicionalmente a psicologia dita moderna tomou o indivíduo como centro de sua análise e elaboração teórica, seguindo a tendência amplamente compartilhada pelas humanidades e pelas ciências sociais da época. Adams inicia a obra com a discussão sobre a relação que a psicologia experimental manteve com os animais a partir dos cães do fisiologista russo Ivan Pavlov, comumente conhecido como o descobridor dos reflexos condicionados e como um dos precursores da escola comportamentalista em psicologia. Seu esforço se encaminha no sentido de imaginar uma outra relação possível entre o “pesquisador” e os “animais pesquisados” com destaque às suas mútuas influências e implicações recíprocas, rompendo com a cisão antropocêntrica segundo a qual o pesquisador tem pleno controle sobre o “objeto” em seu trabalho no laboratório. Dito de forma resumida, os animais não são seres passivos, mas também possuem agência.

O livro também apresenta as experiências de pessoas que se alimentam de animais e aquelas que não se alimentam com o intuito de refletir sobre os aspectos cognitivos, comportamentais e emocionais aí envolvidos. Quando o ato de matar um animal é tido como uma ação pela qual o ser humano se serve de um “recurso natural” para satisfazer sua fome, apaga-se qualquer possibilidade de reconhecimento de sua responsabilidade frente ao matar. Adams busca ensaiar uma ética relacional que, apoiada em Donna Haraway, diferencia o “matar” do “tornar matável” como forma de imaginar outros futuros alimentares. Há ainda um importante debate sobre o mal-estar manifestado por pessoas que vivem em lugares impactados por transformações ambientais. Solastalgia é o nome dado ao estresse e ao luto desencadeados em pessoas que têm que lidar com a perda de suas conexões (apego) com o lugar em que vivem em virtude de mudanças ambientais.

Os encontros multi-espécies, comuns em sociedades indígenas, sobretudo, as de tendências animista, é o ponto mais interessante do livro, com elementos fundamentais à produção de uma escuta sensível à fase geológica atual do planeta terra em que o impacto humano, sobretudo, os advindos dos países do Norte global em decorrência do sistema moderno/colonial capitalista, conhecida como antropoceno ou capitaloceno, tem gerado transformações ambientais de proporções inimagináveis. Nessa escuta, o universo não-humano subjacente às narrativas das pessoas, notadamente os indígenas, mas não apenas eles, suas relações com animais, plantas, rochas, montanhas, objetos encantados, lugares sagrados, entidades espirituais etc., é tão digno de atenção, consideração e respeito como o universo de relações entre seres humanos. É uma saída para a famosa escuta psicológica centrada no papai/mamãe em busca dos “outros significativos” que podem ser humanos ou não-humanos, numa afirmação de mundos materiais compósitos e plurais que não se deixam colonizar pela ideia de que tudo é uma construção social ou linguística.

A obra é indubitavelmente um convite para refletir sobre a relação que os seres humanos mantêm com o mundo mais-que-humano, esse outro enigmático, na maioria das vezes, subalterno, que não fala, como o gato que observa Jacques Derrida enquanto se despe, fazendo-o se indagar se os felinos têm ou não pudor e se deveria sentir vergonha diante daquele cujo olhar atento quanto obstinado se apresenta não como um mistério a ser solucionado, mas como aquilo que mantém a impossibilidade de qualquer certeza final ou absoluta. Trata-se de um gesto pelo qual se tenta manter a alteridade do outro sem colonizá-lo com conceitos, ideias e pensamentos pré-concebidos. Para dizê-lo de outro modo, é uma chance para rever responsabilidades [response-abilities], e o impacto da ação humana na terra com vistas à produção de uma nova subjetividade e, obviamente, de uma nova psicologia.

Por Marcos de Jesus (14.01.2024).

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